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Juízes da internet

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Coluna publicada no dia 29/10.

Há uma nova praça pública onde todo mundo fala ao mesmo tempo. Onde todo mundo tem opinião formada sobre tudo, e quase ninguém quer escutar. Essa praça chama-se internet. Ali, o que antes era conversa de esquina virou debate mundial em segundos. Um gesto, uma frase, um erro — e pronto, multidões aparecem pra dar o veredito. O curioso é que ninguém foi convidado pra ser juiz, mas quase todos se comportam como tal.

E é em tudo. Futebol, política, música, comportamento, religião, moda, culinária. O mundo virou um grande júri popular onde as pessoas se sentem obrigadas a opinar. Às vezes sem saber, às vezes sem pensar, às vezes sem sequer existir um motivo real pra tanto barulho.

A internet deu voz pra muita gente, e isso é maravilhoso quando é pra somar. Mas também deu palco pra julgamentos instantâneos, onde não existe pausa pra reflexão. O que importa é ser o primeiro a dizer algo, mesmo que não haja nada a ser dito.

O tribunal do “achismo”

Ninguém precisa mais de prova. Basta uma suposição, um corte de vídeo, uma frase fora de contexto. O julgamento está feito, a sentença está dada, e a execução vem em forma de comentários, curtidas e compartilhamentos. É um tribunal que não tem código penal, mas pune com uma força que destrói reputações, amizades e, às vezes, a própria saúde mental de quem está do outro lado.

A internet transformou o “eu acho” em sentença final. E é assim que muita gente vai perdendo o senso de proporção. Um erro simples vira crime; uma opinião diferente vira ofensa; um silêncio vira confissão. A pressa por julgar atropela qualquer tentativa de entender.

E quando tudo vira espetáculo, a empatia some. As pessoas esquecem que atrás de cada perfil há alguém com nome, rosto, história e sentimentos. Alguém que, às vezes, errou mesmo — mas que continua sendo humano, e não um personagem público a ser linchado em praça digital.

O prazer em punir

Existe um certo prazer escondido na cultura do cancelamento. É como se a indignação coletiva virasse uma forma de se sentir moralmente superior. “Eu estou do lado certo”, “eu não faria isso”, “eu jamais erraria assim”. É uma catarse moderna — apontar o erro alheio pra esquecer os próprios.

Mas a vida não é uma timeline, e ninguém é um post editável. A complexidade humana não cabe em 280 caracteres. Ainda assim, seguimos reduzindo tudo a frases curtas e julgamentos rápidos. Como se a justiça se fizesse em memes, como se a verdade coubesse num print.

Essa ânsia de punir transforma qualquer deslize em sentença perpétua. E o mais perigoso é que muita gente acredita que está fazendo um bem — quando, na verdade, está apenas multiplicando o ódio.

A diferença entre criticar e condenar

Ninguém está dizendo que não se deve criticar. É claro que a crítica tem seu papel — ela faz parte da convivência, da democracia, da vida em sociedade. Questionar é saudável. O problema é quando a crítica se transforma em condenação. Quando a discussão vira caça às bruxas. Quando o debate vira destruição.

É possível discordar sem desejar o fim do outro. É possível apontar um erro sem arrancar um pedaço da dignidade alheia. Mas parece que desaprendemos isso. Confundimos opinião com ataque, e “ter razão” virou mais importante do que ter equilíbrio.

A internet poderia ser um espaço de diálogo, mas virou um campo de batalha. E quem não grita alto o suficiente acaba sendo engolido pela multidão.

A avalanche do cancelamento

O cancelamento não tem data, nem rosto, nem limite. Pode ser um artista, um político, um anônimo, um adolescente que postou algo errado há dez anos. O passado virou munição. Qualquer frase dita fora de contexto é suficiente pra destruir um presente.

O mais assustador é o tamanho da onda. Um simples comentário pode gerar milhares de reações. Em poucas horas, a vida de alguém se transforma num campo minado. E, muitas vezes, o que se espalha não é verdade — é versão. Uma distorção que, de tanto ser repetida, acaba parecendo fato.

Há quem ache que o cancelamento é só um “susto virtual”, que passa. Mas pra quem vive o olho do furacão, ele não passa. Fica. Fica em forma de vergonha, ansiedade, medo, depressão. Há casos de pessoas que perdem o rumo, a carreira, a vontade de viver. Tudo por causa de uma tempestade que a internet cria e abandona quando encontra outra vítima pra julgar.

O eco da multidão

O mais curioso é que o barulho todo nem sempre vem de má intenção. Muita gente entra na onda sem perceber o tamanho dela. Compartilha, comenta, ironiza — e quando vê, ajudou a empurrar alguém pra um abismo que nem sabia que existia.

As redes sociais nos deram poder demais, e pouco senso de responsabilidade. É fácil apertar “enviar” e esquecer. Difícil é medir o impacto que isso causa em alguém. As palavras, antes jogadas ao vento, agora ficam registradas. E aquilo que era pra ser só uma opinião acaba virando pedra.

O anonimato dá coragem, mas tira humanidade. As pessoas escrevem o que jamais diriam cara a cara. E o que era pra ser um espaço de expressão virou um lugar onde muita gente tem medo de existir.

Quando a vida real é atingida

Nem sempre dá tempo de reparar o dano. As redes esquecem rápido, mas quem foi atingido não esquece. A vida fora da tela continua — só que com marcas que ninguém vê.

Tem gente que perde emprego, amigos, oportunidades. Tem gente que perde o chão. E, em casos mais extremos, perde a própria vida. Porque o julgamento constante não é só um debate virtual — é uma agressão emocional.

É preciso lembrar que nem tudo o que se vê é verdade, e que nem toda verdade precisa ser dita do jeito mais cruel possível. A empatia não é censura. É humanidade.

Um pouco mais de calma

Talvez o mundo precise reaprender a ter calma. Respirar antes de comentar. Pensar antes de postar. Entender que, por trás de um erro, pode haver aprendizado. Que ninguém é perfeito — e que o perdão ainda é mais nobre do que o cancelamento.

A internet não precisa ser um tribunal. Pode ser uma praça de conversa, um espaço de construção, um lugar pra dividir o que nos faz humanos — e não o que nos faz juízes.

No fim das contas, talvez o problema não seja a tecnologia. Seja o que a gente faz com ela. Porque a mesma tela que julga, também pode acolher. A mesma rede que destrói, também pode reconstruir. Basta que a gente escolha usar a voz pra entender, e não pra condenar.

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