GRAMADO – O que começou como uma pequena rachadura se transformou em um pesadelo real para moradores do bairro Piratini, em especial aos das ruas Henrique Bertoluci, Guilherme Dal Ri, Santo André e Afonso Oberheer, que foram afetadas com os deslizamentos posteriores as chuvas que assolaram o município e o Estado do Rio Grande do Sul, em maio.
Em entrevista exclusiva, Lenira Fetzner, 57 anos, conversou com a reportagem do Jornal Integração e explanou seu relato angustiante sobre os eventos que mudaram sua vida e a de sua comunidade para sempre. Lenira é uma das pessoas cadastradas para o Aluguel Social, já tendo recebido a primeira parcela do auxílio, e descreve também como encontrou uma moradia e está fazendo para arcar com custos para se manter.
Quando tudo começou
Moradora do bairro há mais de 25 anos, Lenira possuía casa própria na rua Guilherme Dal Ri, que foi um das afetadas nos deslizamentos que ocorreram no bairro no início de maio. Junto de sua moradia, ela ainda tinha dois espaços em seu terreno que era direcionado para aluguel.
“Percebi uma rachadura na minha casa no dia 2 (maio), de manhã, quando fui trabalhar. Às 10h um vizinho me ligou avisando que a rachadura tinha aumentado, fui imediatamente pra casa e quando cheguei meus vizinhos estavam em pânico, correndo sem rumo, com roupas, animais de estimação, mobília. A casa de outro morador já estava partida ao meio, alguma coisa estalava lá dentro. Jamais vou esquecer as cenas e os barulhos. É algo que só se vê em filme, um pesadelo que não tem fim”, relatou.
A ordem de evacuação foi emitida pouco depois, mas como Lenira observa, a falta de direcionamento da Prefeitura sobre para onde ir representou um dos primeiros grandes desafios enfrentados pela comunidade.
“No primeiro momento só pensei em pegar roupas para trabalhar, meus gatos e meu cachorro. Acreditava que em um dia ou dois estaria de volta para casa. As dificuldades começaram ali mesmo, pois recebemos ordem de evacuação, mas ninguém sabia dizer pra onde a gente deveria ir, onde era seguro, se na escola mais próxima, em algum dos pavilhões de esportes que tem ali perto”, contou.
Ela continuou, frisando que, em estado de choque, carregou os pets para dentro do carro, onde ficou por horas e, posteriormente, decidir para onde iria. “Fiquei três horas com meus gatos e meu cachorro no carro antes de decidir buscar refúgio na casa da minha irmã”, acrescenta ela.
A dificuldade para achar moradias
Lenira lamenta a dificuldade para achar moradias de forma imediata, além de ressaltar os preços elevados dos aluguéis. Além disto, ela comentou que há locatários que não aceitam animais. “É muito difícil encontrar algum lugar pra morar em cima da hora. O aluguel em Gramado é muito caro, precisa de fiador, caução e quase ninguém aceita animais”
Sobre o suporte financeiro do Executivo Municipal, que disponibilizou cadastro para recebimento de um Aluguel Social, Lenira comenta: “Após 40 dias, recebi a primeira parcela do aluguel social, embora muitas famílias ainda estejam esperando por assistência, tendo sido obrigadas a arcar com cauções e aluguéis antecipados sem receber nada”, aponta ela, acrescentando que há muita burocracia para a execução do cadastro, que requer ir até o CRAS munido de CPF, identidade, laudo da defesa civil, matricula do imóvel em risco e contrato de aluguel de onde a família está residindo no momento, além de prever a necessidade de duas testemunhas para comprovar o fato.
Os valores que recebe por meio deste auxílio são repassadas para a irmã que a acolheu em uma pequena cabana que era utilizada para aluguel de temporada, no Vale dos Pinheiros. O montante disponibilizado é de R$ 1.375. Em relação às expectativas em relação ao Aluguel Social, de modo geral, espera que ele proporcione algum alívio ao outros afetados, embora reconheça que o valor não seja suficiente para cobrir os altos custos de moradia em Gramado.
Como funciona o Aluguel Social?
Pessoas que pagavam aluguel possuem direito a uma parcela. Os que tinham imóveis próprios têm direito a seis parcelas que podem ser prorrogadas para 12. O pagamento é suspenso quando a família retornar pra casa.
Até o fechamento desta matéria 190 famílias haviam se cadastrado no programa e 74 já haviam recebido o pagamento. O projeto foi aprovado pela Câmara de Vereadores no dia 29 de maio.
O financeiro e o emocional
A idosa, que percorria o trajeto do bairro ao Centro caminhando, atualmente mora há mais de dez quilômetros de onde residia. “Eu morava há 5 minutos a pé do Centro da cidade, hoje moro há quase 15 km de distância”, reclamou. Lenira ainda ressalta que, diferente da situação que passa, há pessoas que perderam suas casas, mas não possuem a mesma rede de apoio que ela e lutam contra a dificuldade de encontrar moradias que se encaixem no valor disponibilizado.

Questionada sobre sua situação financeira, ela respondeu: “É desesperadora. Antes eu gerava renda dividindo minha casa em dois kitnets para aluguel. Agora, com a casa destruída, dependo de trabalhos extras e do apoio de amigos e familiares para sobreviver”, descreve. Os valores arrecadas com os kitnets rendiam cerca de R$ 2.500, mensalmente. Ainda, Lenira contou que no dia 2 de maio, quando sua casa começou a ruir, também foi marcado por seu pedido de demissão do emprego que estava há mais de 25 anos. Ela explicou que depois de 40 anos dedicados ao trabalho havia decidido que ia parar de trabalhar, mas foi surpreendida pela tragédia. Conforme ela, continua trabalhando como extra para se manter.
O aspecto emocional também tem sido devastador, segundo ela, que apesar de continuar trabalhando, classifica como um desafio já que as lembranças do acontecido retornam à mente constantemente. Lenira contou que a irmã mais velha Leonita, de 73 anos, também residia na Guilherme Dal Ri, e perdeu a casa. As duas foram acolhidas pela irmã mais nova no Vale dos Pinheiros, tendo a mais velha que retornar a residir mais próximo ao Centro por conta de sua saúde. “Minha irmã perdeu sua casa na mesma rua, o que nos obrigou a nos separar devido às suas necessidades de saúde. Ela precisa ter acesso rápido ao hospital e posto de saúde”, partilha.
Quando a chuva começa, Lenira relata que se levanta da cama e fica em alerta para, se for necessário, sair imediatamente. “Cada vez que chove eu fico com o coração na mão. Aqui, quando começa, eu levanto com o celular na mão e vou olhar ao redor de casa, porque qualquer coisa eu me mando”
“Meus vizinhos eram como minha família”
Se recordando da vizinhança e a moradia, Lenira se emocionou salientando que os moradores se tratavam como familiares. Atualmente, quando um ex-vizinho liga, ela pensa no pior.
“Meus vizinhos eram como minha família, nossa rua não tem saída, é curta então todo mundo ali se conhecia e confiávamos uns nos outros. Cada vez que toca o telefone a gente já pensa que é mais uma casa que caiu, eu adorava dormir com chuva hoje eu entro em pânico quando começa a chover”, sublinhou.
Indenização e retomada
Em entrevista ao Jornal Integração, o prefeito Nestor Tissot mencionou a possibilidade de desapropriar os terrenos e indenizar os proprietários que foram afetados, no bairro Piratini. Acerca dessa intenção, Lenira projeta um valor de indenização e questiona o que dará para fazer. Ainda, ela comentou que o prefeito teria sugerido que moradores afetados fossem morar em Canela ou em outras localidades de Gramado.
“O prefeito vai indenizar R$ 200 mil? Não dá pra fazer nada. Teve uma ocasião que eu ouvi ele falar que “quem sabe vocês não vão morar em Canela?” Eu sou operária de Gramado há 40 anos, não vou abandonar”, mencionou.
Sobre a reconstrução de áreas afetadas e a retomada turística e econômica, Lenira conta que sua experiência fizeram que ela entendesse que o município de Gramado é resiliente e poderá se reinventar turisticamente para recuperar a economia. Ainda, ela sublinhou que a Administração deve ter “dois braços”, um para auxiliar as pessoas e locais afetados, e outro para focar no turismo e na economia.
“Eu penso que a Administração tem que ter dois braços. Um braço para o turismo e um braço para a reconstrução. Gramado é uma cidade muito resiliente, tem uma capacidade de se reinventar impressionante. A gente viu isso na pandemia e já está tendo movimento, no final de semana estava bem bom o fluxo. Então, eu penso que cabe, sim, cuidar das duas partes”, completou.
Necessidade de protocolos de evacuação e infraestrutura de acolhimento

Ela também destaca a necessidade urgente de melhorar os protocolos de evacuação e a infraestrutura de acolhimento para incluir necessidades básicas como banho e lavanderia, além de acomodações para animais.
“É necessário elaborar protocolos de evacuação, urgentemente. Precisamos de locais de acolhimento com estrutura para receber as pessoas com dignidade, com espaço para banho e lavanderia e que possa acolher os pets, muitas pessoas não tinham para onde ir justamente por canta dos bichinhos. Precisamos ter casas para moradia temporária e casas populares para quem não vai poder voltar nunca mais”, sugere.
A gramadense acredita que é crucial que a gestão atual e a futura de Gramado se comprometa com medidas eficazes de resposta e reconstrução, incluindo estudos de solo para novos loteamentos. Ela ainda pede para que medidas de prevenção sejam estudadas e instauradas para evitar que novas catástrofes ocorram.
“Essa catástrofe vai entrar para a história de Gramado, vamos aguardar pra ver como a gestão atual da cidade e a próxima vão entrar para a história, se como a administração que fez tudo para auxiliar a comunidade e reconstruir os bairros com agilidade e eficiência ou se vai ser lembrada pela omissão. É urgente pensar no clima e nas consequências das chuvas. Elas vão voltar. Já aconteceu em novembro no Bairro Três Pinheiros e no Orlandi, em menos de seis meses outro evento afetou profundamente o Bairro Piratini, Avenida das Hortênsias e muitos outros pontos”, finalizou.












