InícioNotíciasCrescimento desordenado de ocupações expõe fragilidade da habitação canelense

Crescimento desordenado de ocupações expõe fragilidade da habitação canelense

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Nos últimos anos, Canela se consolidou como uma cidade de realidades distintas. Se de um lado estão o turismo pujante e a pavimentação de dezenas de ruas, do outro estão problemas habitacionais e de saúde pública. Enquanto a maioria dos visitantes e população local conhecesomente o primeiro lado, centenas de famílias enfrentam diariamente a segunda realidade. A expansão desenfreada de moradias em condições irregulares expõe uma fiscalização deficiente e contribui para formar uma população paralela, à margem dos serviços ofertados à maioria da sociedade.

Muitas famílias encontraram na ilegalidade um caminho mais fácil para conseguir um espaço para viver. Diante dos altos preços de imóveis na região, pessoas de baixa renda são facilmente atraídas pela proposta de vendedores clandestinos, que comercializam terrenos sem escritura por valores que variam entre R$ 20 mil e R$ 30 mil, em média.Tal prática impulsionou o número de moradias irregulares no município, trazendo consigo inúmeros problemas sociais e ambientais. Nestes locais os moradores vivem em condições precárias, sem a mínima segurança, saneamento básico e energia elétrica.

Em junho do ano passado, em reportagem feita pelo JI, a Prefeitura de Canela confirmou a existência de cinco áreas invadidas no município. Duas ficam no Distrito Industrial, duas no bairro Santa Marta e uma no bairro Dante. Nelas estariam residindo cerca de 180 famílias, contabilizando 500 pessoas – quase metade delas crianças. O levantamento foi feito no início do atual governo, quando todas as casas construídas em áreas invadidas foram cadastradas para fins de regularização. Após dois anos do cadastramento,nenhuma residência foi regularizada.

Por outro lado, desde o ano passado dois loteamentos irregulares estão recebendo a regularização fundiária: Alberi Corrêa (Canelinha) e Edgar Haack (São Luiz). Neles residem cerca de 120 famílias, que aguardam a conclusão do processo para receber a matrícula de seus imóveis. Em ambos os casos, por se tratar de apontamentos do Ministério Público, os custos do processo de regularização serão todos pagos pelo Executivo.

 

Em meio à precariedade, insegurança das moradias e saúde das crianças preocupam

O cenário é desolador no maior loteamento irregular do município.Conhecido popularmente como ‘Adão Miroti’, ocupa uma área pública às margens da ERS-235, no Distrito Industrial. Moradores afirmam que mais de 600 pessoas residem lá, a maioria delas crianças. As casas possuem em média 20 metros quadrados – algumas chegam a abrigar até 12 pessoas. Embora a construção de novas moradias tenha sido estancada segundo a prefeitura, a população que reside no local continua aumentando.

A energia elétrica chega por meio de um ‘gato’, colocando em risco a segurança dos moradores. Em menos de um ano dois incêndios atingiram o local. Saneamento básico não existe, a água utilizada vem de um poço artesiano e precisa ser fervida antes de ser ingerir. Durante tempestades e fortes ventos aumenta o risco de deslizamentos e queda de araucárias sobre as casas. O acesso precário também dificulta um socorro quando necessário, impossibilitando a entrada de um caminhão de bombeiros, por exemplo.

Leondir Nascimento Lima, 45 anos, reside há 12 anos no loteamento com a esposa e quatro filhos. Ele lamenta as condições vividas no local e afirma que a situação piorou nos últimos anos. “Nós simplesmente não existimos, não temos sequer um endereço. Por isso nem um médico conseguimos direito. Mesmo assim é um local bom, aqui moram pessoas trabalhadoras. Queremos que regularizem pra que a gente consiga pelo menos ter luz e água de qualidade. Muitas crianças moram aqui e vão para a escola, mas como não tem um abrigo coberto esperam o ônibus na chuva na beira da rodovia. É complicado viver assim”, desabafa.

As condições impróprias para as crianças também preocupam a moradora Zenaide Port dos Santos, 61 anos. Ela reside há quase três décadas no local, é uma das mais antigas. Hoje a aposentada ajuda a criar os filhos e netos. “As crianças estão sempre doentes por aqui, não sabemos o porquê. Quando dá muito vento também não dormimos por medo de cair um pinheiro em cima da casa. No passado troquei meu antigo terreno por um lote aqui, mas hoje me arrependo, queria apenas um pedacinho pra sair”, destaca.

Em cada moradia uma história diferente, todas marcadas pela dificuldade. Entre elas está a de Anerli de Oliveira, 54 anos, que possui múltiplas doenças, a principal delas a osteoporose (doença que enfraquece os ossos). Devido a isso ela não consegue se locomover. A aposentadoria por invalidez, que até então era sua única fonte de renda, foi cortada recentemente. Hoje a mulher depende do marido José Monteiro, 64 anos, que faz ‘bico’ como pedreiro em algumas obras.

Além disso, os problemas envolvendo a moradia também incomodam o casal, que aguarda uma realocação prometida pela prefeitura. “Temos que colocar um filtro na torneira porque a água é muito suja. A energia também chega muito fraca aqui pra nós, o chuveiro funciona de vez em quando e a máquina de lavar roupa já deixamos de usar, nunca liga. E de noite temos que acender uma vela pra não ficarmos no escuro.Há algumas semanas falaram que vão tirar a gente daqui, estamos esperando”, conta Anerli.

Andando pelo loteamento é comum ver crianças brincando de pés descalços no barro. Muito lixo também fica espalhado pelo local, servindo de casa para dezenas de cachorros abandonados, que também residem por ali. Em alguns casos sem energia elétrica ou chuveiro para tomar banho, crianças tomam banho de torneira antes de ir para a aula, como flagrou a reportagem do JI em visita ao loteamento. Em apenas uma hora no local foram inúmeras as situações presenciadas.

Este local, em específico, de acordo com o Ministério Público, é considerado de preservação e não poderá ser regularizado.

 

Promotor destaca importância da contenção e complexidade das regularizações

Entre suas atribuições, o Ministério Público atua como mediador nas questões que envolvem as regularizações fundiárias. Para controlar a expansão das invasões, o promotor Paulo Eduardo de Almeida Vieira defende uma contenção mais eficaz à instalação de moradias em áreas irregulares. Ele também destaca que um processo de regularização é complexo e difícil, não se definindo em apenas um ‘canetaço’. O MP orienta que o Executivo tome cautela em relação a possíveis promessas que tendem a fomentar as ocupações.

“O Município não pode prometer a regularização fundiária de determinadas áreas, porque tu gera uma expectativa que por vezes não será confirmada. Muitos locais não poderão ser regularizados porque são áreas de preservação permanente ou áreas verdes, portanto são áreas públicas (a exemplo do loteamento Adão Miroti). A nossa preocupação é que cada vez que se aventava, sem ter dados concretos, que haveria regularização de determinado local, os criminosos de loteamentos clandestinos começavam a comercializar terrenos e construir casas. Nós vimos isso, o que nos gerou preocupação”, explica Vieira.

Segundo o promotor, são inúmeros os critérios a serem analisados antes de uma regularização – características da área, regularização de matrículas, existência de proprietários e lindeiros, implantação de sistema de esgoto, abertura de ruas, entre outros. Também seriam múltiplos os atores envolvidos, exigindo um trabalho verificação das redes de apoio, incluindo especialmente a saúde e a educação. A intenção é compreender de que forma as demandas sociais seriam absorvidas. E todo o processo de regularização depende ainda de disponibilidade orçamentária.

Para Vieira, a expansão desordenada pode ser facilmente compreendida diante da disparidade entre a população absoluta e o número de cartões do Sistema Único de Saúde (SUS) emitidos em solo canelense. Segundo o IBGE, Canela tem 42 mil habitantes. Porém, mais de 60 mil pessoas estão cadastradas no SUS. Essa diferença populacional estaria morando aqui, ou pelo menos utilizando a estrutura oferecida pelo município, como escolas, unidades de saúde e hospital.

“Qual a cidade que nós queremos? Estamos caminhando a passos largos para transformar Canela em uma cidade típica metropolitana, como Parobé, Alvorada e Sapucaia do Sul, por exemplo. Se não houver contenção, nunca conseguiremos dar a volta. Pois a invasão precisa de um dia, mas a implantação de um espaço habitacional demora anos, exige uma série de cuidados econômicos e ambientais. A resolução das mazelas anda numa velocidade, mas as mazelas andam muito mais rápido”, pondera o promotor.

De acordo com ele, os programas habitacionais são importantes para a realocação de alguns moradores irregulares. No entanto os efeitos não seriam sentidos caso a fiscalização e o controle das invasões não avancem no mesmo ritmo. “Enquanto não tiver o cercamento eletrônico da cidade e equipamentos para demolir construções irregulares imediatamente, estamos secando gelo. Não haverá dinheiro nem área pública ou privada para realocar esse pessoal”, afirma.

Em geral, Vieira não se considera otimista em relação à celeridade das atuações do Município. Ele utiliza uma metáfora para expor a realidade canelense. “Se uma pessoa está com uma hemorragia, primeiro é preciso estancar para depois colocar as bolsas de sangue. Agora, se colocar as bolsas de sangue sem estancar a hemorragia,o problema não será resolvido e a pessoa vai acabar morrendo. Na habitação é a mesma coisa. Se continuarmos nesta lógicavamos destruir nossa cidade”, frisa o promotor.

 

Texto e fotos: Gustavo Bauer/JIH

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