CANELA – O amanhecer de segunda-feira (8), foi atípico na cidade. Dezenas de viaturas e policiais civis chamaram a atenção ao tomar a rua Dona Carlinda para cumprir mandados de busca e apreensão nas sedes dos poderes Executivo e Legislativo. Era a Operação Caritas, deflagrada pela Polícia Civil com o objetivo de combater organização criminosa estabelecida em parte do poder público para o desvio de verbas públicas, fraudes em contratos e enriquecimento ilícito de agentes políticos e servidores da Prefeitura e da Câmara de Vereadores.
Ainda pela manhã, Canela já estampava manchetes de veículos de imprensa de todo o estado e conforme as notícias iam revelando detalhes, a sociedade ficava cada vez mais estarrecida. Durante a ação, foram cumpridas 176 ordens judiciais, entre mandados de prisão preventiva, mandados de busca e apreensão, afastamentos cautelares de servidores e liberação de sigilos bancário e fiscal, com bloqueio de valores de partido político local, retenção de imóveis e veículos.
A pedido da Polícia Civil, o Poder Judiciário autorizou a prisão preventiva de três agentes públicos e o afastamento cautelar de outros três servidores. Foram presos o presidente da Câmara de Vereadores, Alberi Dias, o secretário de Obras e Serviços Urbanos, Luiz Cláudio da Silva (Ratinho) e o interventor do Hospital de Caridade de Canela e assessor jurídico da Prefeitura, Vilmar Santos.
Foram afastados de forma cautelar de suas funções, o secretário de Turismo e Cultura, Ângelo Sanches, o secretário-adjunto de Obras, Osmar Bonetto, e o servidor Denis Souza, que era CC na Secretaria de Obras.A Delegacia revelou que promoveu o pedido judicial para prender preventivamente cinco agentes e afastar seis servidores. No total, o trabalho policial investiga 40 pessoas.
Em uma coletiva de imprensa ainda na manhã de segunda-feira (8), o delegado regional de Polícia, Heliomar Franco, e o delegado titular da Delegacia de Canela, Vladimir Medeiros, esclareceram detalhes da Operação Caritas.
“Nós focamos inicialmente as investigações no Hospital de Caridade de Canela, onde tínhamos, lá no mês de abril, uma apreensão de materiais de construção que teriam sido desviados do Hospital para uso privado em um sítio no interior da cidade”, disse Medeiros.
Ele revelou que aquela ação foi o estopim para descobrir outras irregularidades e aprofundar o trabalho investigativo. “Temos descoberto alguns núcleos de atuação ilegal, focados inicialmente no HCC, mas não só. Chegamos em muitas ações ilícitas na Secretaria de Obras e na Secretaria de Turismo e no gabinete da presidência da Câmara de Vereadores. O que nós conseguimos apurar é que se trata de uma organização criminosa com diversos membros atuando cada qual dentro de suas atribuições com divisões de tarefas muito bem estabelecidas para se utilizar do Poder Público para benefício do próprio grupo e do partido dos membros da organização criminosa”, esclareceu.
Vladimir relacionou os crimes apontados no inquérito que está sendo elaborado pela Polícia: “São crimes contra administração pública, peculato, corrupção ativa, corrupção passiva, concussão, falsificação de documentos, uso de documento falso, fraudes em licitações, lavagem e ocultação de bens e valores”.
Um dos questionamentos levados à Polícia é com relação ao prefeito Constantino Orsolin. Vladimir deixou claro que “o prefeito não é investigado no inquérito, e o inquérito não tem nenhum elemento indicando que o prefeito tenha alguma responsabilidade de algum dos crimes investigados. O inquérito não envolve o prefeito”.
HOSPITAL DE CARIDADE DE CANELA
Em maio de 2019, a Prefeitura promoveu a intervenção do Hospital de Caridade de Canela e contratou uma empresa para administrar a Casa de Saúde. E o trabalho investigativo constatou que os sócios da tal empresa tem ligação particular com agentes públicos. “Apuramos que a Prefeitura fez a contratação de um instituto (Instituto Brasileiro de Pesquisas Tecnológicas – Ibrapt) que tem vinculação direta e pessoal com os políticos da cidade. A contratação do Instituto para administrar o hospital, que deveria ser uma administração técnica, está muito claro no inquérito policial, quese deu na verdade por relações pessoais tanto que quem é contratado para administrar tem parentesco ou é sócio em empresas privadas”, apontou Medeiros.
Conforme a investigação, a Prefeitura contratou o Ibrapt para administrar o HCC sendo Adriana Seibel a pessoa responsável pelas atividades no hospital. Adriana é casada com Jacob Nestor Seibel, sócio de Vilmar Santos em pelo menos duas lojas que funcionam dentro do parque SkyGlass Canela. Nesta semana, a Prefeitura rompeu o contrato com o Instituto e criou uma comissão interventora para conduzir o hospital.
RACHADINHA CANELENSE
“Também apuramos a existência de uma rachadinha canelense, onde há a exigência de pagamento de parte dos vencimentos dos servidores que exercem Cargo em Comissão (CC), tanto no Executivo quanto no Legislativo. Pagamentos que somam de 5% a 10% dos vencimentos mensais. É um pagamento absolutamente irregular e sem qualquer tipo de contabilização formal, sem qualquer formalização dentro da legislação eleitoral. E mais, é uma contribuição que não é espontânea, mas sim uma exigência”, explicou.
O delegado referiu que havia ameaça aos que não pagassem a rachadinha. “No curso das investigações conseguimos verificar muito claramente que quem não pagasse o valor que era obrigado a pagar era ameaçado de ser exonerado e perder o emprego. E apuramos que mais de uma centena de funcionários públicos fazia o pagamento mensal que chegava a somar até R$ 20 mil por mês. Fizemos a apreensão de valores e documentos contábeis em que se verificava pagamento de cada servidor numa tabela onde se marcava o valor e se o servidor havia pago ou não”, detalhou.
A Polícia teve acesso a conversas por meio do aplicativo WhatsApp entre dois membros da Executiva do MDB e que também ocupavam cargos de confiança no governo municipal. Osmar Bonetto, que era vice-presidente do partido, e Eduardo Lopes, tesoureiro do MDB, controlavam e faziam as supostas cobranças. Além de estarem afastados dos cargos partidários, Bonetto está afastado da função de secretário-adjunto de Obras e Lopes pediu exoneração do cargo de CC que exercia na Prefeitura.
OPERAÇÃO EM OUTRAS CIDADES
A operação envolveu 175 policiais e cumpriu 176 mandados de busca e apreensão nas cidades de Canela, Gramado, Novo Hamburgo, Canoas, Porto Alegre e Bom Princípio, além de cidades em outros estados como Balneário Camboriú e Itajaí em Santa Catarina. Vladimir Medeiros sublinhou que nestas outras cidades ocorreram apenas buscas.
“Alguns dos nossos investigados, ou possuem imóveis, ou endereços residenciais ou endereços comerciais nesses cidades. Então, além de cumprir os mandados de busca a apreensão em Canela, em órgãos públicos, residências e empresas, também cumprimos nesta demais cidades. Em Gramado houve apenas buscas”, afirmou.
“Em Santa Catarina, apuramos que duas empresas com sede naqueles municípios tem relações não republicanas com membros do alto escalão político de Canela ao ponto de que um dos presos é administrador de um complexo turístico, a ponto de um dos afastados ser responsável pela área temática na sua pasta e dentro daquele complexo atuar como empresário e assim tem a confusão do que é público e do que é privado. A mistura que é ilegal e, mais ainda, a utilização do cargo público, ou seja, apenas estão ali porque detém cargo de chefia, não fosse isso não seriam empresários e não estariam naqueles ambientes ali”, ponderou.
SOCIEDADE EM EMPREENDIMENTOS PRIVADOS
“Porquê que quando um grande complexo é rapidamente instalado em Canela, logo depois os responsáveis pela liberação e fiscalização, os responsáveis pela administração do que é público em relação aqueles espaços privados se tornam sócios?”, questiona Medeiros.
“Verificamos que alguns empreendimentos da cidade, notadamente, descendo a estrada do Caracol, foram loteados diversos espaços que são privados para membros da alta cúpula política de Canela, como a administração de quiosques e empresas, lojas e estacionamento, que ensejou também buscas nestes locais”, aprofundou.
A referência é o funcionamento de lojas e quiosques como comércio de lanches, vestuário, chocolates, cafeteria, adega e administração de estacionamento em complexos turísticos cujos responsáveis, ou sócios, teriam ligação particular com políticos da alta cúpula canelense. Um dos empreendimentos citados é o SkyGlass Canela.
FRAUDE EM LICITAÇÕES
Outro ponto descoberto pela investigação é a prática de fraude em orçamentos e licitações para contratações de empresas para prestação de serviços. As empresas vencedoras normalmente eram ligadas a agentes políticos do alto escalão que venciam as disputas públicas apresentando melhores orçamentos. As licitações exigem sempre uma tomada de preço de três orçamentos e a Polícia constatou que havia combinação na apresentação dos orçamentos para beneficiar o grupo político.
Mensagens de celular obtidas pela polícia e que são atribuídas aos investigados mostram como era feita a suposta fraude. O grupo acertava que uma determinada reforma seria contratada por R$ 26 mil. Assim, outras duas empresas, que seriam de fachada, apresentariam propostas maiores, de R$ 27 mil e R$ 29 mil.
É neste esquema que aparece, conforme a Polícia, o envolvimento do vereador Alberi Dias, como um dos articuladores das negociações para a combinação dos orçamentos fraudulentos. Em uma mensagem trocada entre o vereador e um empreiteiro, o prestador de serviço sugere que se coloque no segundo orçamento o valor de cerca de R$ 5 mil mais alto e no terceiro de R$ 10 mil. “O grupo fazia orçamentos fraudulentos para vencer contratos com a Prefeitura, esses contratos passariam pela presidência da Câmara de Vereadores”, diz Vladimir.
Afastamento foi pedido dos investigados
O advogado criminalista Ricardo Cantergi, que atua na defesa de Luiz Cláudio da Silva, Ângelo Sanches e esposa, salientou durante a entrevista que concedeu à rádio Integração Digital na manhã de quarta-feira (10), que o afastamento dos investigados das funções públicas foi um pedido deles próprios. “Foi a pedido deles. O afastamento tratado na audiência de custódia foi um pedido deles”, frisou.
Durante a entrevista, Cantergi também salientou que o processo ainda está em fase inicial, pediu cautela da sociedade e explicou os motivos que levaram os investigados a terem o pedido de liberdade concedido pelo juiz Vancarlo Anacleto.
“É muito importante ter cautela, porque tudo tem dois lados. É tudo muito inicial ainda. Olha só, prisão preventiva não é antecipação de pena, é apenas cautelaridade para o bom andamento do processo investigativo. Quando não há necessidade de prisão, não faz sentido prender. Nenhum deles tem antecedentes criminais e o magistrado entendeu que mantê-los afastados era suficiente, inclusive o próprio Ministério Público entendeu que o afastamento era suficiente para não interferir no processo”, esclareceu.
No seu pensamento, até esta fase do inquérito, não foram demonstradas provas robustas que possam incriminar os investigados. “Não se destrói reputações desta forma, não se pode simplesmente fazer uma alusão de imaginar uma situação, precisa necessariamente trazer provas robustas de que ele está fazendo ou agindo de forma a beneficiar um, ou outro. E isso não foi feito, nem demonstrado, por enquanto é uma conjectura, é uma imaginação. O delegado entende como sendo uma incompatibilidade e eu não vejo assim”, acrescentou.
“Não defendemos a impunidade, mas defendemos a legalidade. Querem prender alguém? Se for necessário, que se prenda, desde que seja justo, que sejam cumpridas as normas e a lei. Não é vale tudo, temos regramentos e esse regramento é para salvaguardar a todos nós para que o poder tenha limites e o poder de punir tem limites e qual é o limite? A lei. É por isso que existe o judiciário, tem juiz, promotor, o delegado, o advogado, o juiz pode concordar com um, ou com outro, depois tem os recursos”, exemplificou.
Cantergi estima que o trâmite judicial destes casos demorará anos para chegar a um desfecho. “Esta é uma investigação muito grande. São mais de 40 investigados com mandados de busca e apreensão de documentos e computadores e tudo isso vai ser verificado e periciado. Este é um processo que deve durar muitos anos. Não posso quantificar o tempo que levará, mas será longo”, projetou.
O que diz a defesa de Alberi Dias e Vilmar Santos
A reportagem do Jornal Integração também procurou os advogados que fazem a defesa judicial dos demais agentes políticos detidos.
Alberi Dias está sendo representado pelo Escritório Campana Advogados. O advogado Ademir Campana destacou que irá provar que seu cliente não tem envolvimento no esquema. “Ainda estamos levantado informações, lendo documentos, são muitos documentos, mas dentro do que já apuramos preliminarmente nada encaminha para participação dele. Não há envolvimento dele nem como vereador, nem como contador. Agora, com calma, vamos aprofundar o trabalho e provar a inocência dele. A Polícia Civil fez um trabalho bastante detalhado, com vasta documentação, mas agora, na companhia do cliente dando depoimentos formaremos uma defesa sólida”, enfatizou.
Vilmar Santos delegou sua defesa aos advogados RosiláSalbego Lopes e Rafael Canterji. Ao Integração, a advogada resumiu que “a investigação é ampla e está sendo acompanhada de perto pela defesa para a garantia dos direitos do investigado, o qual está à disposição da justiça e das demais autoridades para elucidação dos fatos”.
CONTRAPONTO
A repercussão da Operação Caritas provocou mudanças no primeiro escalão do governo municipal, na Câmara de Vereadores, na Executiva do MDB e também na intervenção do HCC. Todos se manifestaram de forma oficial ao longo da semana. Confira o que disseram:
PREFEITURA – “O prefeito Constantino Orsolin não foi citado em nenhum momento na operação e não é alvo das investigações;A Administração Municipal vai acatar as decisões judiciais;As determinações judiciais impostas foram cumpridas e o município está aguardando as medidas cabíveis e aplicáveis na defesa dos interesses públicos e dos envolvidos;A Administração Pública está abrindo um processo administrativo interno para apuração dos fatos e sua posterior divulgação à comunidade;Por fim, o prefeito Constantino Orsolin ressalta que foi surpreendido pelo ocorrido, que acredita na boa fé dos servidores e agentes políticos, não compactuando com nenhum tipo de irregularidade que venha a prejudicar a lisura na administração pública”.
SKYGLASS–“Skyglass Canela informa que sempre teve valores como ética e transparência absoluta como seus pilares, sem proporcionar qualquer favorecimento político ou de outra natureza a qualquer pessoa, empresa ou órgão público.A relação com os lojistas que operam no empreendimento é estritamente por meio de contrato de locação de espaço para a oferta de seus produtos e serviços. O Skyglass Canela está colaborando com as investigações e totalmente à disposição das autoridades neste caso”.
MDB – “Todos os envolvidos no caso que está sendo investigado pela Polícia Civil foram afastados de suas atividades partidárias de forma voluntária. Uma nova Executiva está sendo montada, assim como uma comissão provisória para acompanhar a apuração dos fatos noticiados. A respeito deste assunto, O MDB de Canela se coloca à disposição das autoridades, bem como da nossa comunidade e dos filiados para quaisquer esclarecimentos. Lembramos que qualquer juízo de valor neste momento é precipitado e acreditamos que no final deste processo a verdade prevalecerá. Por fim, continuamos trabalhando firme em prol da nossa comunidade”.
Nomeada comissão para assumir intervenção do HCC
Na terça-feira (9), por Decreto Municipal, foi instituída a comissão de transição da intervenção do Hospital de Caridade de Canela (HCC). Interinamente, a enfermeira Iracema Montiel de Oliveira assume como interventora da casa de saúde, juntamente com os seguintes membros da comissão: Mário Augusto Weirich (secretário Adjunto de Saúde), Jackson Müller (secretário de Meio Ambiente), Magali AndrieliTheobald (assessora jurídica) e Fabíola Raymundo Ceconi (gerente operacional).
Na mesma data os membros da comissão já realizaram reuniões internas com líderes de equipes do hospital. Na ocasião, foram definidas algumas ações a serem realizadas a curto prazo como análise de todos os contratos firmados pelo HCC, dos custos e das verbas públicas destinadas à instituição, além da reavaliação do organograma de funcionários.
Pachequinho assume como vereador nesta terça (15)
O afastamento cautelar do presidente da Câmara de Vereadores, Alberi Dias (MDB), exige uma alteração na composição da Mesa Diretora e também no plenário da Casa. Conforme o regimento interno da Câmara, por conta do impedimento judicial de Alberi, que precisa ficar afastado por pelo menos 60 dias, a vereadora Emília Guedes Fulcher (Republicanos) é quem assume a presidência. O posto de vice-presidente passa para a vereadora Carla Reis (MDB), enquanto que Alfredo Schaffer (PSDB) passa para 1º secretário.
Também por conta do afastamento de Alberi, será necessário convocar um suplente para assumir a função legislativa neste período. E o suplente que assumirá é Artur Pacheco, o Pachequinho, que estava na função de secretário-adjunto de Assistência Social.
Texto: Fernando Gusen – [email protected]