Leonardo Santos – [email protected]
CANELA – A Casa Vitória tem se consolidado como um importante ponto de apoio para mulheres em situação de violência doméstica. Com 902 atendimentos realizados, a instituição com três anos de atuação desempenha um papel essencial ao oferecer suporte psicológico, social e estrutural, auxiliando vítimas e suas famílias na difícil jornada de superação e no rompimento do ciclo de abuso.
A reportagem do Jornal Integração foi até a Casa Vitória para falar com a coordenadora Manoela Negrelli, a assistente social Joci Mara Rodrigues e a psicóloga Denise Kochi, que falaram sobre o serviço da instituição. O JI também recebeu um relato de uma vítima que preferiu não se identificar.
Além de acolher mulheres, a Casa já abrigou 52 famílias, proporcionando itens de necessidade básica como vestuário, kits de higiene e alimentação. Para muitas, a Casa Vitória representa um recomeço. Entre os casos atendidos, 531 mulheres realizaram acompanhamento psicológico e social, 153 buscaram atendimento social, mas não aceitaram apoio psicológico, enquanto 192 recusaram ajuda. Outras 26 mulheres decidiram mudar-se para outras cidades em busca de uma nova vida.
Ao longo desses três anos, foram realizadas mais de 2.780 consultas, reforçando o caráter multidisciplinar do atendimento. Manoela Negrelli, coordenadora da Casa Vitória, destacou a importância do trabalho realizado:
“Aqui na Casa Vitória, a gente atende todas as mulheres vítimas de violência doméstica em Canela. Toda mulher que registra uma ocorrência com base na Lei Maria da Penha tem o processo encaminhado ao Fórum. Após isso, já é agendada uma data para atendimento psicológico e social aqui na Casa Vitória. Além disso, temos o abrigamento para mulheres que sofrem agressões e não têm para onde ir, junto com seus filhos. Nosso papel é fortalecer essas mulheres para que elas consigam romper esse ciclo de violência.”
Desafios no atendimento
A complexidade dos casos é um dos maiores desafios enfrentados pela equipe da Casa Vitória. Denise Kochi, psicóloga da instituição, apontou que muitas mulheres chegam em estado emocionalmente devastado:
“Elas chegam aqui muito destruídas, com muitas perdas. A violência doméstica atinge a mulher principalmente psicologicamente, mesmo quando é física. Muitas vezes, elas têm receio de vir até aqui por medo de serem julgadas. Elas se sentem culpadas e envergonhadas pelo que vivenciaram. Nosso trabalho é ajudar essas mulheres a resgatar a autoestima e os direitos que lhes foram tirados.”
Joci Mara Rodrigues, assistente social da Casa, destacou que a violência doméstica vai muito além da agressão física, privando as mulheres de sua liberdade e autonomia:
“A maioria das vezes, a violência começa de forma psicológica e vai se agravando. Muitos agressores impedem as mulheres de trabalhar, de ter contato com a família ou até mesmo de ir a uma consulta médica. Nosso papel é garantir a elas o acesso aos seus direitos, à educação dos filhos e à reinserção no mercado de trabalho, ajudando-as a superar a dependência econômica e emocional.”
Histórias de superação
Entre os relatos emocionantes, Manoela relembra uma história marcante de resiliência:
“Uma paciente nossa, com três crianças pequenas, começou a fazer bolos para vender. Ela guardava o dinheiro em um vidro de pepino pintado que ficava debaixo da cama. Um dia, percebeu que o vidro estava cheio e decidiu que era hora de mudar de vida. Ela conseguiu romper o ciclo de violência, criar seus filhos e, hoje, é um exemplo de superação. Ela disse que a violência terminou com ela e que sua filha não viveria o mesmo.”
Outra história comovente foi compartilhada por Denise:
“Uma mulher tentou romper o ciclo de violência duas vezes, mas voltou para o agressor por questões financeiras. Na terceira tentativa, ela conseguiu. Recentemente, a encontrei no centro da cidade, e ela estava irreconhecível. Feliz, com os filhos, parecia outra pessoa. Ela lutou muito para alcançar essa nova vida.”
Joci Mara também recordou uma situação que envolveu, além da vítima, suas filhas:
“Essa mulher suportou anos de abuso até descobrir que suas filhas também estavam sendo vítimas do agressor. Foi quando ela conseguiu denunciá-lo e veio para a Casa Vitória. Com nosso apoio, reconstruiu sua vida em Gramado, retomou o contato com a família e hoje está feliz, trabalhando e cuidando das crianças.”
Educação e conscientização
A Casa Vitória também desenvolve projetos educacionais para prevenir a violência doméstica. Denise Kochi contou sobre as ações realizadas nas escolas de Canela:
“Neste ano, realizamos palestras para mais de 1.200 alunos da rede municipal. Durante as palestras, algumas professoras se deram conta de que viviam situações de violência doméstica e buscaram ajuda. Além disso, promovemos concursos de redação e teatro com os estudantes, incentivando o debate sobre igualdade de gênero e conscientização.”
Visibilidade às formas de violência
A Casa Vitória também produziu um documentário que será lançado em 2025. Segundo Denise, a ideia é dar visibilidade às formas de violência menos perceptíveis:
“A violência física é mais reconhecida, mas existem outras formas, como a psicológica, patrimonial, sexual e moral, que são muito sutis e muitas vezes passam despercebidas. Queremos trazer essas questões para o debate e reflexão em uma sociedade ainda muito machista.”
Mensagem de esperança
Para Manoela, a mensagem da Casa Vitória é clara:
“Juntas somos mais fortes. Estamos aqui para apoiar, sem julgamentos. Queremos oferecer o suporte necessário para que as mulheres rompam o ciclo de violência e reconstruam suas vidas. A violência doméstica não pode ser tolerada.”
Denise reforça que o atendimento está disponível para qualquer mulher, mesmo sem boletim de ocorrência:
“Se você acha que está passando por uma situação de violência, venha até a Casa Vitória. Estamos de portas abertas para orientar e acolher.”
A Casa Vitória é um exemplo inspirador de como uma rede de apoio pode transformar vidas. Para quem vive em Canela, é um lembrete de que é possível superar a violência e recomeçar.
Para procurar ajuda da Casa Vitória, faça contato por meio do (54) 9.8121-5174 ou por meio do @casavitoriacanela, no Instagram. O 190 também é uma opção.
“A minha história de abuso começou no início da pandemia”
Uma das mulheres acolhidas pela Casa Vitória, cuja identidade será preservada para garantir sua privacidade, compartilhou sua experiência de superação. Ela relata que a violência psicológica começou no início da pandemia, período marcado pela gravidez e pelo isolamento social imposto pelas circunstâncias. “A minha história de abuso começou no início da pandemia, que eu engravidei e ninguém sabia o que era a pandemia para as grávidas, enfim. E aí o meu ex-marido já começou a muito cuidar de mim, eu não podia sair de casa, eu não podia sair do carro, eu não podia vir à minha família, eu sou de Porto Alegre, minha família vinha… eu não podia vir para cá me ver, porque era perigoso, meus amigos às vezes vinham para cá e também não podiam me ver. E aí tu confunde com cuidado, tu acha que isso é um super cuidado, né?”, desabafou.
À medida que os meses passavam, o comportamento do parceiro se tornava cada vez mais controlador. Ele monitorava o celular dela, supervisionava suas ações e restringia seus movimentos. Após o nascimento do filho, que veio ao mundo com um problema cardíaco e precisou de cirurgias, as restrições e humilhações se intensificaram. “Eu me tornei uma péssima mãe (segundo ele). Eu não podia dar os remédios, ele supervisionava se eu dava os remédios certo, supervisionava se eu dava as mamadeiras certo, se eu estava lavando as mamadeiras, eu não podia sair com o meu filho ou porque estava muito quente ou porque estava muito frio”, contou.
O abuso psicológico ficou ainda mais evidente quando ele começou a armar situações para desacreditá-la, incluindo instalar escutas clandestinas na casa. “Ele colocava escutas dentro de casa, fazia gaslighting para eu surtar e ele gravar e não aparecer a voz dele”, explicou. Em meio a uma depressão pós-parto, ela buscou apoio psiquiátrico em Porto Alegre e iniciou uma luta judicial desgastante após ser acusada de abandono do lar.
O ponto de virada veio após um incidente em que ele jogou o carro contra o dela, o que, segundo a vítima, foi uma tentativa de intimidá-la. Foi somente a partir desse episódio que conseguiu uma medida protetiva e foi encaminhada para a Casa Vitória.
O acolhimento recebido na instituição foi transformador. “Aquela sensação de culpa, que tu é um monstro, que tu é uma vítima, que tu é de vergonha, foi bem difícil, mas quando eu fui na minha primeira consulta, eu já vi que a casa é uma casa acolhedora, que as mulheres são acolhedoras, que tu não passa por julgamentos, tu é acolhida, e a partir desse momento eu comecei a ter o apoio da Casa Vitória”, lembrou.
Graças ao acompanhamento psicológico e ao ambiente acolhedor, ela conseguiu reconstruir sua autoestima e recomeçar sua vida. “A Casa Vitória foi um divisor de águas na minha vida, porque na Casa Vitória eu consegui ver que eu não era culpada, que tem muitas pessoas que passam por isso também, que a gente não é culpada, e com a ajuda psicológica eu consegui retomar minha vida, me reencontrar como pessoa, como mulher, e recomeçar minha vida totalmente do zero”, afirmou.
Um ano e meio após a medida protetiva, ela continua recebendo apoio da Casa Vitória e segue em terapia. “Eu só agradeço a Deus pela existência da Casa Vitória, e das pessoas que lá trabalham. Nessas situações a gente se encontra muito sozinha, muito julgada, muito vítima, e a Casa Vitória muda tudo isso para nós. Ela faz com que a gente consiga ver as coisas de outra forma, e que a gente se sinta acolhida.”
A história dessa mulher é apenas uma das muitas que mostram o impacto da Casa Vitória na vida das mulheres que encontram refúgio ali.
Apesar de ser “pesado” ler uma matéria assim, os olhos se enchem de lágrimas. É emocionante ver que aquele trabalho de formiguinhas está alcançando visibilidade.
Casa Vitória será para sempre um PONTINHO DE LUZ nas nossas vidas❤️